Fechar
Presente!
Você está aqui: Página Inicial / Coluna dos Pais Poetas / Histórias de Poeta e suas Viagens

Histórias de Poeta e suas Viagens

A Poesia e a mão Assassina

castelopp20001.jpg

Castelo de Poetum - Ponte sobre as águas - Caminho para os arredores da cidade

 

 

Vocês sabem que sou atemporal e que nasci e vivi há muitos séculos. Há muitos e muitos séculos atrás eu trabalhava na padaria central de Poetum na receita de um pão especial, com a mistura de trigo com aveia, e desejava aplicar ao mesmo um aroma de ervas verdes do campo. Então, dirigi-me, logo no amanhecer, para o campo nos arredores do vilarejo central de Poetum e, após uma caminhada de uma hora, atingi uma planície onde havia pequenas casas e plantações de tamanho diminuto. A imagem era de um mar de ervas verdes. Uma das casas tinha a chaminé descascada, mas dela saía uma fumaça branca e organizada como as argolas de uma corrente de ferro. A porta estava se abrindo e um homem robusto, tórax avantajado com cabelo e barba vermelhos saiu e sentou-se no banquinho de madeira de três pés. Apoiou a mão no queixo e o cotovelo na coxa direita. Chegando à casa e abaixando-me com cuidado de não ser avistado por ele, olhei por sobre o parapeito da janela. Era uma casa pobre, mas confortável, com sala quadrada e única com panos grossos, duas camadas de panos grossos de lã sobrepostas numa pilha rasa de palha onde repousavam três crianças com cabelos longos. Não pude saber se eram meninos ou meninas. No outro canto, junto a um fogão a lenha, e trabalhando com o umbigo colado a um tronco de madeira tosca, redondo e largo, grosseiramente nodoso e resistente, uma pequena mulher de cabelos loiros descascava várias batatas grandes e as jogava sucessivamente numa espécie de caldeirão de ferro no fogo movido a lenha. Ela cantava uma música para embalar crianças e, pasmem vocês, ela sorria, largava a faca e as batatas a cada dois ou três minutos e voltava-se para acariciar um filhote de ovelha que ruminava capim e bebia água num pote adjacente à bancada onde a mulher preparava sua sopa de batatas. Ela praticava sua culinária medieval, cantarolava e acariciava a ovelha. Acariciava a ovelha, descascando as batatas, cantarolava e olhava o bichinho. Num átimo, o homenzarrão adentrou a sala quadrada com um trovejar de passos curtos e vociferou algo que não pude compreender. Pela sua face retesada e pelos gestos da sua mão direita, que cortava o ar para cima e para baixo, parecia que ele não gostava da música que neste momento era muito audível mesmo ao redor da casinha. Mas, quando ela quis alcançar a ovelha, o homem segurou firmemente a mão direita da moça, elevou a voz, pegou a mulher com a mão esquerda e a ovelha no colo com a sua maozarrona direita por sobre o ventre do bicho e carregou-as para fora da casa. Rodei meu corpo e fui espiar a cena olhando pela borda do perfil do canto da parede de casa. O homem dizia claramente na língua de Poetum que a casa não era lugar de animal, que a ovelha deveria ficar no lado de fora. A mulher entrou na casa, e o homem pegou um arado grande para bois e o elevou na vertical para fazer algum reparo. Depois, dirigiu-se para uma palhoça de barro para procurar alguma ferramenta. A mulher saiu da casa e puxou a ovelha para dentro. O homem voltou ao arado, olhou para a ovelha e não a viu. Retesou seu corpo e eriçou os pelos dos braços. Entrou resoluto na sala aos gritos. Corri para a janela, as crianças choravam, agora soluçando. Ele arrastou a moça para fora, dizia possíveis impropérios, jogou-a num monte de lenha e ela gritou de dor ao bater o tórax na madeira. Ele pegou um ancinho ergueu o mesmo no ar...

Castelopp10001.jpg

Castelo de Poetum visto de Longe. Repare que o castelo foi construído sobre o rio.

Uma lenda corria nesta época entre os poetas de Poetum que, se no minuto imediatamente anterior à ação final na execução de um assassinato, o assassino ouvisse uma poesia alegre e enérgica a mesma travaria a mão e o instinto do assassino. Assim este não cometeria o assassinato. Foi quando corri para o outro lado da parede e fui para a frente da casa, já recitando em voz altissonante:

 

Homem rude e trabalhador

Vossas ervas verdes testemunham

Pai ou não destes rebentos

Vós sois senhor destes arredores e destas vidas.

 

Olha para a mão que cava a terra

Para agora para sorrir!

Amanhã um sol ameno

Há de brilhar nos teus olhos livres.

Ama a moça, esquece a raiva!

A raiva passa a moça fica!

Cria uma ode ao teu bom senso

O amor do mundo vai

Te abraçar.

 

O Homem ficou petrificado com a minha presença. Baixou o ancinho, deu a mão à moça, levantando-a. Ajoelhou-se, olhando os pés dela, e pediu perdão mil vezes num tom de voz decrescente...

Quando ele voltou a fronte para me olhar, só pode ver um vulto que corria balançando a mão esquerda num vai e vem. A mão direita subia e descia com o feixe de ervas verdes que, como faca sem fio, cortava o ar e me ajudava a correr para fazer num segundo, meu pão de ervas adocicadas. A lenda que uma poesia poderia travar a mão assassina já havia assim acontecido comigo no reino de Poetum...